O desafio dos trabalhadores da arte na Baixada Fluminense no pós pandemia

Após um longo processo de descaso, a Baixada Fluminense toma fôlego e tenta se reestruturar apesar das sucessivas tentativas de desmonte do setor, capitaneado por várias frentes que enxergam a produção e disseminação cultural periférica como inimigas.

Para complicar ainda mais a situação, a pandemia empoderou uma vertente anticultural inflamada, incendiando o discurso de ódio que só esperava a oportunidade de sair das sombras. Iniciou-se então uma caça às bruxas e assim se deu início a uma investida contra o setor, só vista anteriormente no regime ditatorial de 64.

Sendo morador da região e ativista em contato direto com as bases, vi situações e ouvi relatos que realmente nos mostrou quão séria era a situação.

Muitos artistas que estavam fora do eixo do mercado convencional, mesmo apesar de todos os contratempos conseguiam se manter, contudo a ideia e objetivo era: – “Extinguir os que eram considerados elementos de manipulação pela então esquerda comunista que só absorviam recursos da Lei Rouanet e nada produziam”.

Constatamos de perto a dura batalha desses resilientes que sempre estiveram no front e de cabeça erguida, em muitos casos alguns tiveram que se desfazer de seus equipamentos ou até mesmo instrumentos musicais que eram utilizados como ferramenta de trabalho.

Durante esse período conturbado nós, no Instituto Enraizados, conseguimos repassar uma grande quantidade de cestas básicas e vários tipos de doações como roupas, material didático, material de higiene, incluindo álcool gel e máscaras descartáveis.  Criamos um canal (Emergencial Bxd ) de interlocução com os artistas, produtores e trabalhadores da cultura que estavam em dificuldades e compartilhamos com eles não só as doações, mas também as informações a respeito de como acessar os recursos e os editais que estariam por acontecer.

Distribuição de cestas básicas no Enraizados
Distribuição de cestas básicas no Enraizados

 

A situação realmente era séria, já que nem acesso aos transportes públicos as pessoas estavam tendo, então muitos optaram por realizar outras atividades remuneradas como: motorista de aplicativo, entregador de produtos vendidos pela internet, entregador de lanche ou venda de produtos alimentícios na própria residência. Outra problemática foi como fazer toda essa logística funcionar de uma maneira que não colocasse os voluntários em risco e que chegasse de maneira eficiente às pessoas que realmente necessitavam.

Muitas artesãs tinham como fonte principal de subsistência a venda de seus produtos, e muitas eram senhoras com idade avançada e sem permissão para expor suas mercadorias. Pudemos fazer um paralelo entre os empresários/exploradores que conseguiam por meio de decisões judiciais, permissão para se manter obtendo lucros às custas da saúde e segurança de seus empregados, e essas senhoras que sequer puderam ocupar as calçadas e praças das cidades.

Mas nesse furacão que parecia não apresentar melhoras, a Lei 14.017/2020, conhecida popularmente como Lei Aldir Blanc, foi sancionada à base de muito custo e disputas.

Começou então outra via crucis, que foi a elaboração das propostas por parte dos artistas e o entendimento por parte dos gestores municipais estarem aptos a receberem e implementarem esses recursos, foi uma maratona dolorosa perceber que nem todos os artistas tinham sequer a compreensão de como colocar suas ideias no papel de forma clara, e que nem todos os legisladores públicos municipais tinham a expertise para fazer esse recurso tão urgente estar disponível. Tentamos dar suporte a grupos e artistas que nunca haviam sequer pensado em escrever um projeto. Essa deficiência ficou evidente durante esse período e ainda hoje precisamos pensar formas de sanar essa questão o quanto antes, mas esse será um assunto que pretendo abordar em outra coluna.

Samuca Azevedo
Samuca Azevedo

Por fim, os valores foram disponibilizados e muitos artistas (e coletivos) conseguiram acessar, e então uma situação mais crítica pôde ser evitada.

Cabe agora a nós que temos um pouco mais de lucidez (se é que temos), tentarmos equalizar essa situação e dar suporte a quem precisa para as próximas oportunidades que estão se alinhando no horizonte.

Estamos em um momento pós pandemia, onde apesar das mais de 700 mil mortes (que poderiam ter sido evitadas), estamos ensaiando um momento de normalidade. Nossa classe (artística cultural periférica) está convalescente e emergindo das profundezas para retomar o fôlego e tentar retornar a realidade, apesar da tentativa de massacre que sofremos durante 04 anos, vamos tentar compreender o cenário que nos deixaram, e como fênix tentar ressurgir dessas cinzas que ficaram como legado, mas apesar de feridos, saímos mais sábios e mais calejados.

Sarau Poetas Compulsivos no Buteco da Juliana, em Morro Agudo
Sarau Poetas Compulsivos no Buteco da Juliana, em Morro Agudo

Muitos elos se fortaleceram e vários sonhos foram criados, muitas pontes estão sendo construídas, morremos um pouco com nosso passado recente, mas a decisão de ficar no caixão é individual.

A Baixada Fluminense sempre foi e sempre será resiliente em todas as áreas, novas oportunidades estão por chegar, ao menos agora temos um vislumbre de que algo muito bom nascerá depois de todo esse caos.

Sigamos em frente.

Sobre Samuca Azevedo

O coteúdo deste texto não reflete a opinião do Portal Enraizados ou do Instituto Enraizados, e é de inteira responsabilidade do autor. Samuel Azevedo é ator e produtor cultural, atualmente é Presidente do Instituto Enraizados.

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