terça-feira, 19 março, 2024

Jesséé Yatta e a cura da depressão

Era a terça-feira mais linda e ensolarada do ano, ele estava empregado, tinha uma casa enorme e era casado com a mulher dos sonhos, a amiga de infância que era sua alma gêmea. Tudo estava aparentemente bem, contudo Jesséé Yatta, um um jovem negro, de aproximadamente 1,85 de altura e um bom humor contagiante quase que diário, acordou e se deparou com um mundo cinza.

A tristeza se fez presente e ganhou um espaço considerável em seu dia, a sua auto-estima foi  a zero. Ele estava visivelmente desanimado.

Para a sua esposa, dias como esse, apesar de não serem comuns, não eram novidade, ela já havia participado de outros dias nebulosos ao lado do marido, que ficava extremamente irritado e desmotivado sem motivo aparente, não havia atividade que lhe trouxesse de volta ao mundo azul.

Ela lembrou que certa vez, após um dia como o de hoje, o marido a orientou: – Pequena, caso eu fique assim novamente, ligue para Kashore Sadikifu. Ele saberá o que fazer.

Enquanto o marido se dirigia para o banheiro, Jamila Harbuu, a jovem esposa, enviava um pedido de socorro via WhatsAssp para o amigo salvador da pátria.

A mensagem dizia: – Caro Kashore, hoje Yatta acordou mal, precisamos de sua ajuda.

Kashore tinha a mesma idade de Yatta, porém era muito mais baixo, tinha aproximadamente 1,65m de altura e nenhuma pessoa jamais o havia visto de mal humor. Entretanto as características da personalidade de Kashore iam bem além destas. O jovem era insuportavelmente animado a qualquer hora do dia ou da noite, e não sossegava enquanto não arrancava sorrisos dos amigos.

Inacreditavelmente, cerca de 15 minutos após receber a mensagem, Kashore chegava à residência de Jamila e Yatta. Ele morava há 15 kilometros de distância.

Enquanto isso, Jamila foi para o quarto das crianças e lá ficou, por uma hora. Quando saiu, o marido já não estava em casa. Havia saído com o amigo.

Quando Yatta saiu do banheiro e ficou frente a frente com Kashore, sentiu raiva da esposa e uma vontade enorme de dar uma surra no amigo, simplesmente por causa do sorriso que ele carregava no canto da boca.

Mas antes que Yatta pudesse demonstrar suas intenções, Kashore o colocou no carro e o levou para o campo de futebol, estava acontecendo a final do campeonato de várzea no bairro onde nasceram. Todos os amigos estariam lá.

Contudo Yatta, apesar de não estar interessado em futebol ou qualquer outra prática esportiva, sabia que Kashore não desistiria, sendo assim acompanhou o amigo.

Kashore disse: – Onde está sua chuteira Yatta?

– Não vou jogar.

– Porque não? Você é nosso zagueiro, nossa parede, nada passa por você, ainda mais com essa cara feia e mau humorada que você está hoje. 

– Não vou jogar.

– Então não joga. Vou fazer um gol pra você.

Quando chegaram ao campo, muitos amigos já estavam bebendo cerveja, ouvindo música e comendo churrasco. Yatta não falou com ninguém. Para não ser mal educado, foi direto para a mesa ao lado do vestiário e sentou-se. Kashore pediu para dona Irene levar uma cerveja para Yatta, pois sabia que ele jamais a destrataria.

Yatta, mesmo contra a vontade, bebeu um copo de cerveja e depois mais um. Aos poucos foi se aproximando dos amigos que estavam aos gritos, pendurados no alambrado. Derrepente Yatta já estava em campo, dando o sangue para vencer a partida, além de muita canelada nos adversários.

O time do bairro venceu o campeonato, com muito esforço de todos os atletas e da torcida, mas com um gol inesquecível, do meio de campo, de bico, do zagueiro Yatta.

Yatta saiu carregado pelos amigos, aos gritos de “É campeão”. Comemorou com os amigos até altas horas.

Não lembra como chegou e nem a que horas chegou em casa.

Acordou com uma dor de cabeça infernal, fruto da mistura de diversos tipos de bebidas alcoólicas. Yatta não bebia com frequência. Era a ressaca. Elas sempre eram cruéis.

Yatta desce as escadas em direção à cozinha. Ele quer saber como chegou em casa e a única pessoa que pode lhe esclarecer esse mistério é sua esposa, que lhe recebe com um grande sorriso no rosto.

Ele, ao ver o sorriso da esposa, lhe retribui com um outro sorriso e senta-se à mesa.

“Nunca mais eu bebo”, diz Yatta.

E a esposa responde: – “Você sempre diz isso”.

E ele completa: – “Mas nunca deixe de chamar o Kashore, apesar de ele ser um baixinho insuportável, ele é a cura da minha depressão”.

Ela conclui: – “Os amigos são”.

Sobre Dudu de Morro Agudo

Rapper, educador popular, produtor cultural, escritor, mestre e doutorando em Educação (UFF). Dudu de Morro Agudo lançou os discos "Rolo Compressor" (2010) e "O Dever Me Chama" (2018); é autor do livro "Enraizados: Os Híbridos Glocais"; Diretor dos documentários "Mães do Hip Hop" (2010) e "O Custo da Oportunidade" (2017). Atualmente atua como diretor geral do Instituto Enraizados; CEO da Hulle Brasil; coordenador do Curso Popular Enraizados.

01 comentário

  1. Gostei muito!!!
    Todo mundo precisa de um amigo desse!!!

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