Hoje, mais uma vez, recebo no meu WhatsApp um vídeo terrível de um assassinato ocorrido no meu bairro.
Veio de todo lugar: da vizinhança, de conhecidos, de gente que mora no exterior. O que mais me incomoda não é só a violência, porque, infelizmente, ela é parte do cotidiano das periferias do Brasil — vinda tanto do Estado quanto de justiceiros autoproclamados. O que mais dói é ver como a mídia tradicional aproveita esses episódios para reforçar a mesma narrativa de sempre: a de que o nosso território é sinônimo de barbárie.
Não é coincidência.
Existe uma escolha editorial deliberada em mostrar apenas a dor, a morte, o medo. As câmeras apontam para os tiros, mas ignoram as sementes que florescem. Ignoram a potência que existe nos becos e vielas, na arte, no conhecimento, na construção coletiva.
É preciso compreender que a construção da imagem pública de um território não é neutra: ela é um projeto. A cobertura midiática que insiste em retratar a Baixada Fluminense como um campo de guerra não apenas ignora as manifestações de vida, criatividade e resistência que florescem aqui, como também contribui para a manutenção de políticas públicas de abandono.
Ao associar continuamente a periferia à violência, alimenta-se o medo, justifica-se a ausência do Estado na promoção de direitos e estimula-se a lógica do controle armado e da repressão como única resposta possível. Esse apagamento sistemático de iniciativas como o Instituto Enraizados — que promove educação, arte, cultura e autonomia — não é fruto do acaso, mas da escolha por manter invisível o que ameaça a lógica dominante: a potência organizada das periferias.
Enquanto a imprensa noticia com gosto as mortes — muitas vezes com requintes de espetáculo —, a própria população local, consciente ou inconscientemente, reforça o estigma impresso pela narrativa midiática ao compartilhar incansavelmente a “notícia tenebrosa”. Enquanto isso, a menos de 1km do local onde o crime aconteceu, o Instituto Enraizados — uma associação cultural fundada no coração de Morro Agudo — realizava, silenciosamente, o que a imprensa não mostra, como consta abaixo.
Somente em 2025, realizamos:
- Um seminário internacional em parceria com uma das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos, a Duke University, levando cinco jovens para se apresentarem artisticamente, compartilharem pesquisas feitas no bairro e promoverem intercâmbio cultural com jovens de outros países;
- Três edições do Sarau Poetas Compulsivos, que há mais de 10 anos cultiva a literatura na Baixada Fluminense;
- Uma edição do evento “Poesia, Rap & Samba”, celebrando a cultura preta em todas as suas linguagens;
- Uma edição do Acampamento Musical, reunindo 30 artistas do estado, incluindo moradores da Providência e dos Prazeres;
- Uma edição do Cine Tela Preta, um cineclube com curadoria de filmes dirigidos e protagonizados por pessoas negras;
- Aulas de teatro em parceria com o Projeto Teatro Nômade;
- Seis masterclasses com temas como Produção Cultural e Justiça Ambiental;
- Mais de 50 aulas no Curso Popular Enraizados, nosso pré-vestibular comunitário, que já ajudou mais de 20 jovens a entrarem na universidade;
- E, pra fechar, nos dias 3 e 4 de maio, realizamos o Festival Caleidoscópio, com 24 horas de programação e cerca de 100 artistas se apresentando, tudo produzido por 30 jovens formados no nosso curso de produção cultural.
Duas curiosidades que a imprensa ignorou:
- Entre 1º de fevereiro e 4 de maio de 2025, cerca de 2 mil pessoas passaram pelo Quilombo Enraizados — e nenhuma briga foi registrada.
- Em 25 anos de história, jamais houve uma confusão sequer nas atividades promovidas pelo Instituto Enraizados.
Ou seja, não é a violência que nos reje, nossa potência definitivamente não está na violência, mas na produção de arte e de experiências culturais ricas.
Veja bem, mesmo com assessoria de imprensa contratada, quase não houve cobertura para o nosso festival — salvo pelas nossas próprias ações de comunicação, que, ainda assim, conseguiram alcançar quase 200 mil contas apenas no Instagram, ao longo de um mês de produção intensa.
Nenhuma matéria destacou nossas conquistas. Nenhuma chamada de capa. Nenhuma nota de rodapé. Nenhuma mensagem de parabéns, nenhum aplauso. O silêncio é ensurdecedor.
Mas basta uma voz alterada, um mal-entendido ou um suposto conflito para que os holofotes se acendam. Aí sim, viriam as manchetes, os compartilhamentos em massa, os julgamentos apressados, os dedos apontados.
Porque para a lógica perversa da grande mídia — e muitas vezes, da própria opinião pública —, a periferia só interessa quando está sangrando. Quando está produzindo, educando, festejando, reinventando o mundo… isso não vira notícia.
Por isso, repito sempre: a periferia precisa contar suas próprias histórias.
Precisamos deixar de reproduzir o discurso do opressor e reconhecer nosso papel como produtores de cultura, afeto, resistência e vida. E quando digo que precisamos narrar a nós mesmos, não é por vaidade ou orgulho identitário — é por estratégia de sobrevivência.
Porque enquanto a violência mobiliza manchetes e reforça políticas de medo e controle, é a nossa capacidade de organização, de coletividade e de criação que verdadeiramente transforma o território. Quando tomamos para nós o direito à palavra, ao microfone, à caneta e à câmera, não apenas mudamos o enredo — reescrevemos o final.
A imprensa vende desgraça. Nós plantamos futuro.