Como criar uma nova cena para o rap a partir das periferias? Uma nova cena para o rap ainda é possível nos dias de hoje?

Estas perguntas permeiam as novas e as antigas gerações do rap há anos. Desde quando eu comecei a fazer rap ouvia dizer que “esse ano é o ano do rap”. Normalmente algum grupo se destacava, com um estilo novo e diferenciado, e logo depois aparecia uma leva de MCs os imitando. Vi isso acontecer com SNJ, com o Sabotage e com o Pregador Luo, depois com Emicida e Criolo. Mais recentemente com Filipe Ret, Bk e Djonga.

Para responder rapidamente a estas perguntas logo no início do texto, algumas pessoas certamente diriam que sim, é totalmente possível criar uma nova cena de rap nos dias de hoje.

Pois o gênero evoluiu de uma cultura urbana mais frequentemente associada à criminalidade para um estilo musical mais acessível, com letras positivas e refletindo preocupações mais amplas sobre as comunidades de hoje.

Os artistas de rap estão cada vez mais dedicados à produção de conteúdo novo original e à promoção dos seus pontos de vista. O crescimento da internet também tornou mais fácil a produção e distribuição da música dos artistas independentes, o que criou espaço para experimentação e expressão criativa.

Mas, a partir deste texto, desejo aprofundar e complexificar mais esta discussão. Desejo refletir um pouco sobre isso e convido vocês para esse rolézinho. Vamos nessa?

Há  tempos tenho percebido que muitos artistas, principalmente os que estão iniciando, mas não somente estes, não tem um planejamento de suas carreiras artísticas e musicais. Muitos não amadurecem seus estilos, copiam o artista que mais gostam, escrevem letras que beiram o plágio e ficam fissurados para entrar logo no estúdio e gravar. Alguns, após essa façanha, se esforçam para gravar um videoclipe, que, ou é cópia do clipe do seu artista favorito ou é ele próprio cantando em frente a câmera, sem ao menos ter se debruçado na elaboração de um roteiro medíocre. Depois disso jogam tudo no youtube e fé!!! Bóra fazer outra música.

Quando eu comecei a rimar, lá pelos anos de 1994, a gente nem tinha acesso a um beat, somente os beats americanos chegavam pra nós. Ao conversar com o MC Marechal durante a bienal da UNE, que aconteceu na Fundição Progresso, no início de fevereiro de 2023, um pouco antes de dividirmos uma mesa sobre educação e cultura, ele me lembrou que era uma prática comum irmos para São Paulo atrás de CDs de beats.

Já participei de eventos onde vários grupos de rap cantavam suas músicas no mesmo beat, que a gente chamava de “base”. Não tinha público também. A gente era limitado, mas bastante criativos. Aqui na Baixada Fluminense, por exemplo, era um celeiro de rappers e grupos de rap. Um diferente de outro. Lembro que tinha o Fator Baixada, o Ultimato a Salvação, o Kappela, o Pêvirguladez, o Slow da BF, o Bob X, o Vozes do Gueto e muitos outros. Cada um com sua singuralidade.

Nosso sonho era gravar um CD. Poucos de nós conseguiu. Mas depois disso, também não tínhamos planos. Normalmente ficávamos com um milheiro de discos encalhados dentro de casa. Muitos de nós vendeu carro, terrenos e outros bens para realizar esse sonho, que logo se tornou um pesadelo de frustrações.

Mas o tempo passou, houve o barateamento tecnológico e a gente teve acesso a vários equipamentos de áudio, muitos de nós montou seu próprio homestudio, aprendeu a usar uns softwares e começou a produzir suas próprias bases e gravar as próprias músicas no quarto de casa. Logo depois as câmeras de fotografia e vídeo ficaram mais acessíveis e os videoclipes explodiram.

A forma de distribuição musical mudou, chegou o Spotify e o Youtube. Eles estão estão aí, são realidades, mas a gente continua com o mesmo modus operandi.

Minha crítica não é musical, pois isso é muito subjetivo, a música que agrada um, desagrada outro. A minha crítica é sobre a forma como nós, artistas, administramos nossas carreiras.

Quantos de nós tem um site, uma rede social bem administrada, um telefone de contato, um email, um release, um mapa de palco e um business rider?

Quantos de nós entende minimamente sobre direitos autorais e direitos conexos, quantos sabem dizer o que é ISRC, quantos sabem dizer a diferença de uma agregadora para uma associação de gestão coletiva? Quantos de nós registra a própria música?

Quantos de nós tem um show decente para apresentar para os fãs? Sim, nós temos fãs. Às vezes a nossa base de fã é pequena, mas merece tanto respeito quanto se fossem milhares de pessoas. Nossos poucos fãs merecem assistir a uma apresentação de qualidade, nossos fãs merecem receber o nosso melhor. Para isso a gente precisa se dedicar, a gente precisa ser profissional. A gente precisa cuidar e administrar essa base de fãs, entender que são eles.

Lembro que no ano de 2010 tinha uma escolinha de hip hop no Enraizados. Muitas pessoas me criticavam dizendo que hip hop não se ensina (e não se aprende), que a gente nasce com o dom e etc. Nem discuto porque realmente tem gente que acredita nisso daí, da mesma forma que tem gente que acredita que futebol não se aprende em escolinha. Enquanto isso a classe média tá tomando o espaço da favela nos times de futebol do Brasil inteiro.

Mas a minha questão é: Que tipo de artista você quer ser?

Vi vários meninos e meninas chegarem no Enraizados sem saberem como se portar no palco. Vários que gaguejavam na frente de uma câmera durante uma entrevista. Mas que com o tempo, a partir de muita prática, muito treino, foram se desenvolvendo. Eu vi esse desenvolvimento em muitos deles. Sem contar que suas rimas e suas poesias ficavam cada vez melhores. Não era um “projeto social” para crianças carentes, era um espaço onde todos nós podíamos nos desenvolver artisticamente.

Infelizmente tivemos que parar com a Escola de Hip Hop Enraizados na Arte, e alguns desses artistas, formados ali, tenho orgulho de dizer que sou fã da arte que produzem até hoje. Inclusive já contratei alguns para se apresentarem nos eventos que produzo. Contratei porque eram bons artistas e tinham o que entregar, não porque eram meus amigos e amigas.

Mas esse barateamento tecnológico, ao mesmo tempo que foi muito bom para a nossa liberdade e desenvolvimento enquanto artistas, nos dando independência pra produzir e gravar a nossa própria música, também formou um monte de artistas que só funcionam dentro de estúdio, que estão produzindo em escala industrial, sem nenhum planejamento. E alguns deles não fazem ideia de como se portar em cima de um palco. Me parece que a única coisa que importa é colocar as os videoclipes no youtube e seguir gravando músicas e mais músicas.

A pergunta é: Pra que? Pra quem?

Durante a pandemia, fui contratado para fazer uma apresentação em uma cidade vizinha. Chamei alguns MCs para me acompanhar nesse show. Antes, propus um ensaio. Me espantou que parte dos artistas não sabia a própria música, cantavam olhando a letra no celular, outros chegaram com o beat no telefone, outros cantavam olhando pro chão. Uma decepção pra mim. Tenho certeza que se tivessem participado da escolinha de hip hop do Enraizados, não se portariam de tal forma.

Outro jovem MC, num outro momento, havia gravado um CD, na época estava na moda gravar EPs. Lembro que três meses depois ele já estava preparando outro disco. Ninguém ainda tinha ouvido o disco de lançamento, a não ser o círculo de amigos, o que nós chamamos hoje de “nossa bolha”. Levei ele pra se apresentar em Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e ele ficou maravilhado.

Para não ficar apenas nas críticas e provocações, que nem é o meu objetivo com esse texto, trago também sugestões, pois minha ideia aqui é que possamos praticar reflexões a partir da nossa própria vivência enquanto artistas. Esse texto não é para todo mundo, mas para nós artistas que ainda não estão “hypados”, contudo seguem na luta por um lugar ao sol, desejando trabalhar de forma organizada, pensando suas carreiras e investindo nela.

Importante dizer também que quando falo em investimento não estou falando somente de dinheiro, mas de tempo, de dedicação, de olhar com mais seriedade e respeito para o seu próprio “trabalho” artístico. Há cinco anos, o WSO, junto com vários amigos lançou o melhor videoclipe que já vi por esses lados de cá. O que faltou pra esse clipe explodir? São essas perguntas que devemos tentar responder.

Mano Brown disse que todos os dias trabalha oito horas no seu projeto artístico, ou seja, na sua carreira. É disso que estou falando. Investimento.

Minhas propostas são (e não serve somente para Baixada Fluminense, isso, no meu ponto de vista, serve para qualquer região do Brasil que esteja disposta a se organizar):

  • Fomentar uma rede dinâmica e de ajuda mútua: Definir um raio geográfico e estabeler parcerias com artistas dessa região, formando um coletivo horizontal, uma espécie de observatório para mapear produtores musicais, beatmakers, proprietários de estúdios, curadores, produtores culturais, fotógrafos, jornalistas, influenciadores, videomakers, cineastas, comunicadores, roteiristas, etc…
  • Criar um protocolo que sirva como farol para “todos” os artistas da rede:
    • Ter uma rede social organizada para interação com fãs;
    • Administração da base de fãs;
    • Um email profissional;
    • Um telefone de contato;
    • Um release produzido por um jornalista ou alguém que saiba o que está fazendo;
    • Fotografias profissionais para disponibilizar para os contratantes.
  • Desenvolver uma protótipo de uma “Produtora Cooperativa”: Centralizar todo o “comercial” (venda de shows, produtos, etc) num só lugar. Administrar um calendário com todos os eventos que acontecem na região (não somente de rap, mas saraus e outros), para que os artistas possam se revezar apresentando seus shows.

Olha que interessante.

Lembrando que, para o desenvolvimento do coletivo, também é importante desenvolver o individual, para a máquina funcionar, é necessário que cada engrenagem esteja funcionando bem, por isso digo que o desenvolvimento individual é tão importante quanto o coletivo.

Cada artista precisa desenvolver sua identidade musical, buscar uma música única, a tal batida perfeita que o Marcelo D2 tanto disse. Isso requer um mergulho pra dentro de si. (Mas talvez isso seja um assunto para uma outra coluna).

Quem sabe percorrendo este caminho, a gente não crie uma nova cena musical com uma linha que conecte todos os artistas envolvidos, seja no beat, no flow ou no tema a ser desenvolvido?

Sei lá, é uma proposta.

Aceito críticas e sugestões nos comentários.

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Sobre Dudu de Morro Agudo

Rapper, educador popular, produtor cultural, escritor, mestre e doutorando em Educação (UFF). Dudu de Morro Agudo lançou os discos "Rolo Compressor" (2010) e "O Dever Me Chama" (2018); é autor do livro "Enraizados: Os Híbridos Glocais"; Diretor dos documentários "Mães do Hip Hop" (2010) e "O Custo da Oportunidade" (2017). Atualmente atua como diretor geral do Instituto Enraizados; CEO da Hulle Brasil; coordenador do Curso Popular Enraizados.

01 comentário

  1. Salve irmão,
    li o texto pensando em nossa caminhada, não só artística, mas também de vida e de como nos conhecemos. Fui avançando na leitura e ao mesmo tempo refletindo sobre o atual cenário musical e também meu espaço nele.
    Irmão, talvez a pergunta não seja “Como criar uma nova cena para o rap a partir das periferias?” , sei que foi no amiúde, mas penso que esta pergunta pode ser ampliada para “Como criar uma nova cena para a arte a partir das periferias?”Já que o Rap é o desaguar de múltiplas artes, como bem explicitado no texto (poesia, fotografia,audiovisual e etc) e para além disso tem as áreas técnicas que pra perifa é quase um mundo negado. Por mais que a periferia seja potência criativa e é, é que sempre o mercado foi lá beber nesta fonte e depois dá uma cara eurocentrada, urge pensarmos coletivamente uma forma de dominar a técnica e a tecnologia, fluir nossos saberes e fortalecer os nossos e também consumir a nossa arte, pq arte também é consumo.
    O coletivo fortalece.
    E precisamos muito da tecnologia do afeto.
    Mojubá

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